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Em relação ao polêmico texto do Wisnik publicado em sua coluna na
Folha no dia 24 de setembro - em que o autor comenta a obra de Biselli e Katchborian (assunto de um
post), recebi uma carta que circula na internet. Quem me passou pede anonimato - mas posso garantir que é um leitor ilustre deste blog.
A carta foi escrita por Julio Vieira, arquiteto formado no Mackenzie em 1987 e que durante mais de 10 anos foi funcionário da Itauplan. Como profissional assalariado, entre outras coisas, ele desenhou aquela interessante agência do Itaú na Berrini, aquela outra em frente ao Pacaembú, e um edifício na Faria Lima. Hoje, Julinho tem escritório próprio e é professor no Mackenzie. Enviada a redação da
Folha, a missiva não foi publicada. Para estimular o debate sobre o tema, publico-a aqui - sem autorização do autor, que, se desejar, tiro-a do ar. Ai vai:
"Carta aberta ao Sr. Guilherme Wisnik
Tendo lido seu texto publicado na Folha de São Paulo (24/09/2007) sobre o recém-lançado livro da dupla de arquitetos paulistas Biselli e Katchborian, em uma coleção intitulada “Arquiteto Contemporâneo Brasileiro” (Ed. Romano Guerra, 2007), com textos de Alessandro Castroviejo e Mario Figueroa, tive a curiosidade inicial de saber o que pensava o autor que, junto com Ana Vaz Milheiro e Ana Luiza Nobre, publicou recentemente (2006) o livro “Coletivo: Arquitetura Contemporânea Paulista”, sobre a produção de seis escritórios paulistanos, todos compostos por ex-alunos da FAUUSP.
Naquela ocasião, ninguém com quem tive a oportunidade de comentar o fato, duvidava da qualidade daquela produção, nem questionava o direito legítimo desses arquitetos de publicarem seus trabalhos, contribuindo assim para a discussão dessa produção contemporânea, ainda em curso. O que as pessoas questionavam, muito justificadamente, era a inadequação do título que, impreciso e generalizador, insinuava ser um recorte na produção contemporânea em São Paulo, quando na verdade sabemos que este não se expandiu além das cercanias da cidade universitária, no Butantã.
Diante deste quadro, não tinha muitas expectativas de um relato entusiasmado da sua parte, uma vez que não somente a produção de Biselli e Katchborian, mas uma vasta produção de boa arquitetura em São Paulo, havia sido ignorada naquela edição.
O que de fato surpreendeu foi a forma descuidada com que o Sr., autor de reconhecido valor, procurou estruturar sua crítica. Por meio de um texto excessivamente superficial e apressado, vago e aparentemente inacabado, o Sr. deixou rastros indisfarçáveis de preconceito e arrogância. Primeiro, ao aludir às declaradas referências projetuais de forma pejorativa e desrespeitosa. Depois, em uma decisão de deliberada má fé, ao eleger como gancho de sua argumentação a referência a Oscar Niemeyer, quando os arquitetos, na verdade, só sutilmente a invocam para justificar certos procedimentos de linguagem, como o texto de Castroviejo bem percebe:
“Nas obras mais recentes, insinua-se uma admiração por Oscar Niemeyer, embora nada em suas obras indique algo próximo de uma postura ou programa de arte que problematize a brasilidade, os regionalismos ou coisas afins.”
É preciso dizer algo mais?
Fica evidente o compromisso de Biselli e Katchborian – e a dupla deixa isso bem claro – com a discussão internacional, esta sim merecedora de maior destaque em qualquer crítica que se possa fazer dessa produção.
Outro ponto curioso em sua argumentação trata da suposta “ambição autoral” dos arquitetos, como se fosse possível e desejável a qualquer pessoa prescindir desse direito legítimo, mesmo quando o discurso possa apontar para uma inconvincente autoria coletiva – o que de fato não acontece de forma estrita nem mesmo com o grupo que consta de sua já referida publicação. Nunca é demais lembrar que Biselli e Katchborian têm em seu currículo a participação freqüente de uma variedade ampla de colaboradores, alguns bem conhecidos de nosso meio.
Me surpreendeu também a forma negativa com que o Sr. se referiu à discussão da pós-modernidade (que o Sr. chamou de moda) reivindicada pelos arquitetos em seus trabalhos inaugurais.
Não vejo necessidade de tentar explicar a importância que essa discussão teve para àqueles que, como eu, se formaram naquela época no Mackenzie, até porque o texto de Castroviejo expõe esse quadro com muita competência. O que causa perplexidade é constatar seu aparente desprezo pela matéria, sendo o Sr. um respeitável crítico de arquitetura contemporânea.
Outro caso flagrante de preconceito se nota ao sugerir o texto uma certa vocação do escritório para se destacar em meio à produção corrente de arquitetura corporativa, cujo valor o Sr. indisfarçavelmente questiona . Pior ainda quando chama de “mero estilismo” aquilo que qualquer arquiteto competente identificaria como valores de uma boa arquitetura. E ainda, num gesto ensaiado de complacência, alude para a destacada habilidade dos arquitetos no agenciamento das operações compositivas, mas adverte:
“Nem toda arquitetura solicita um enorme esforço de justificação teórica”.
Finalizando, o Sr. ensaia timidamente uma argumentação para justificar um problema constatado na transposição dos projetos (muito bem proporcionados e representados pelos desenhos e perspectivas eletrônicas) para as obras construídas, sugerindo uma redução de qualidade nesse processo, explicada em parte pela insuficiência de recursos de nossa tecnologia local. O que parece ser um falso argumento quando se olham com atenção as imagens e fotos que o livro nos expõe. Fotos que resistem a uma aproximação maior da câmera, coisa rara nas publicações mais recentes.
Enfim, o Sr. suprimiu informações fundamentais em sua crítica e deixou um grande vazio no lugar, esquecendo-se de falar, por exemplo, da rica espacialidade dos edifícios e da consistência das propostas plásticas. Da singularidade da investigação proposta por Biselli e Katchborian, sem amarras ideológicas e conceituais, e da grande sensualidade e prazer que advém dessa experiência, não competindo a nós saber de antemão a real contribuição que esta produção legará para a história.
Ou seja, faltou ser honesto. Honestidade que não faltou ao texto de Castroviejo e às inúmeras imagens e desenhos presentes no livro. O que facilita muito o meu trabalho aqui, pois o livro é muito bom e fala por si, sobretudo para aqueles arquitetos que, como eu, gostam de boa arquitetura e dispensam a mediação de qualquer crítico.
Agora, o que dizer a respeito do fato em si? O que o levou a ser tão parcial em suas avaliações?
Bem, talvez este seja um tema para se discutir em algum fórum específico. Tenho motivos para acreditar que a aderência seria ampla e deixo aqui a minha sugestão para um título apropriado:
“Da arquitetura corporativa e da corporativista”
Respeitosamente.
Arqto. Julio Vieira."
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